Cinco e meia da tarde, de um sábado. Maria chega exausta em casa, depois de um dia cansativo. Joga a bolsa no sofá, tira as sandálias e senta. Num instante, recupera-se e desperta para uma outra realidade, a sua. Está em casa, pronta para iniciar a segunda jornada do dia.
Muito cuidadosa, vai ajeitando aos poucos o seu lar. Abre as cortinas para aproveitar, um pouco, a luz do sol. Recolhe os sapatos e as roupas deixados pela casa, na correria do dia. Aos poucos, traz a casa aquele brilho, que só ela sabe como conseguir.
Por volta das oito da noite, José chega e a cumprimenta com carinho. Depois do banho e já recuperado, conversam sobre o dia que tiveram. Dialogam sobre as dificuldades e sobre a esperança de mudar essa situação. Convivem, diariamente, com esses obstáculos. Dula, como é chamada pelos mais próximos, sabe bem como vencê-los.
Muitas mulheres vivem o que ela vive, mas somos incapazes de percebê-las. Estão próximas e longe, ao mesmo tempo. São elas que acompanham o crescimento dos nossos filhos. Conhecem as nossas casas, como ninguém, e não só organizam os lares, mas, sobretudo, a vida de seus patrões. É um trabalho que requer jeito, experiência e cuidado, além, é claro, de muita disposição.
Subir, descer, puxar, empurrar, secar, lavar, estender, ajeitar, arrumar, limpar e cozinhar…ufá! Ser empregada doméstica, não é fácil! Em meio a baldes, rodos, vassouras e outros, a encontramos.
Contradições de uma mesma realidade
Algumas pessoas não utilizam o termo: “empregada doméstica”, preferem: “secretárias do lar”. Quanta hipocrisia! Nos contratos trabalhistas, encontramos essas disposições. Todos somos “empregados”. Não há outra forma de se dizer isso. Discutir essas contradições, de nada nos adianta. A verdade é que precisamos desvendar esse universo escondido, a partir das impressões dessas mulheres. Para elas, essa conversa é inválida. Querem, apenas, serem reconhecidas como seres humanos: “Tudo tem o mesmo sentido, mas desde que não tenha humilhação”, expõe Maria.
Ser empregada doméstica, não foi uma escolha para Dula. O primeiro e único trabalho foi a alternativa encontrada por ela. “Não tive outra oportunidade”, afirma com seu olhar triste e distante, percorrendo todas as conseqüências desse fato em sua vida.
O preconceito, apesar de velado, existe. Olhares de rejeição estão por toda parte: “Quando eu falo que sou empregada me olham diferente. Eu não sei se é discriminação ou humilhação, mas procuro não me afastar.”
A palavra humilhação está presente no vocabulário dessas pessoas. Viver uma situação onde a sua dignidade é contestada, fere profundo, fere na alma. Sentir-se diminuída, menor e desvalorizada é algo comum no dia-a-dia dessas mulheres. Todos se esquecem de que elas são pessoas com sonhos, medos, dúvidas, enfim são pessoas que sentem. Estão em uma situação diferente, porém não são invisíveis. Elas existem. São pessoas como nós.
Vestígios de uma mulher
Dula casou-se e deixou sua cidade natal, São João do Paraíso, no Norte de Minas Gerais, aos 19 anos. Logo quando chegou aqui, em São Paulo, percebeu a grandiosidade dessa cidade. As ruas, os carros, os arranha-céus, tudo era diferente: “Foi difícil para acostumar pegar ônibus. Não tinha coragem de sair sozinha”. Tentava encontrar algo que a transportasse de novo para aquela cidadezinha onde nasceu, para o sertão de Guimarães Rosa, “terreno da eternidade, da solidão”, onde “o homem é o eu que ainda não encontrou um tu”.
O seu falar peculiar a entrega, sem constrangimentos.“É mamãe”, diz ao ouvir o toque do telefone. Na conversa entre ela e sua mãe, o respeito ainda se conserva, mesmo com a distância. O que não se pode fazer pessoalmente, é feito pelo telefone: “Benção, mãe!”, fala ao pegar o telefone. A certa altura, pergunta: “E Nana, Tutu, Jojó e Gil, como estão?”. Esses apelidos revelam pessoas e muitas histórias. Nana é Ana, Tutu é Jairo, Jojó é Geldir e Gil é Gilberto. Esses irmãos e os pais estão longe, mas a distância não os afasta. Pelo contrário, aproxima. Outros três estão, aqui, em São Paulo. João, Eleusa e Lenícia. “Não me sinto sozinha”, fala em tom emocionado. A família é muito valorizada por ela. É o alicerce de sua estrutura.
Além do falar, o seu olhar é marcante, penetrante. É como se ela nos invadisse a alma. Seus olhos nos dizem muito sobre sua vida, sua força e maneira de entender a vida. É muito expressivo, hipnotizador. Deixa claro para o que veio: vencer obstáculos, os mais impossíveis, talvez!
Maria, Maria...
Muitos sonhos lhe foram arrancados, inclusive o de ser mãe. Um exame muda a sua vida. Descobre que seu marido não pode ter filhos. Quando o médico lhe disse: “Seu marido é estéril”, não acreditou. Por um momento, sentiu raiva. Não sabia muito bem se era raiva ou decepção. Não sabia o que fazer, como agir. Não entendia. Pouco depois os dois se olham e se abraçam. Procuram forças um no outro. Milton Nascimento já dizia: “...É preciso ter sonho sempre. Quem traz na pele essa marca, possui a estranha mania de ter fé na vida...”. E Dula a tem, por isso não desistiu. Luta como uma guerreira em batalha.
“A sorte de não ter filho, não é só dele, é minha também”, revela com uma voz embargada. Ela encara o problema como sendo dela. Não esmorece. Decide buscar ajuda. Por orientações de amigos, procura bancos de inseminação artificial. Informa-se sobre os tratamentos disponíveis para o seu caso e percebe que não está sozinha. Assim como ela, milhares de mulheres esperam a sua vez.
A maternidade é um privilégio para as mulheres, que ela ainda não o conhece. Ser mãe é dizer não a si mesma. É entregar-se ao outro, sem medir esforços. Um pai nunca poderá sentir a profundidade do que significa ser mãe. O filho, para Dula, é uma realização e agora um desafio.
Para diminuir os dias e a angústia dessa espera, Dula prepara enxovais não para ela, mas para filhos de outras “marias”. Cada ponto de seu bordado a aproxima desse encontro.
Antes de acontecer, nos sonhos, sente o seu filho, mas não o vê. O tempo não a impedirá de realizá-los. Enquanto, não o tem em seus braços, aprende muito com a sua falta. Essas incertezas são enfrentadas pela fé e amparadas por exemplos como o de Sara, esposa de Abraão, no Velho Testamento, que dá à luz a seu filho Isaque, quando velha. Não temos alternativas, nessas horas, devemos nos apegar a algo mais forte do que nós.
Dula busca essa força na vontade de aprender a costurar, para talvez um dia remendar a sua vida. Todas as situações por ela vivida representam retalhos de uma enorme colcha, que aos poucos vai sendo trabalhada. Ferramentas especiais serão necessárias. Faltam alguns retalhos, outros ainda não estão bem presos. Suas mãos serão indispensáveis na adequação das melhores linhas aos vários tipos de tecido que o destino lhe oferecerá. As linhas serão responsáveis por tecer todos os momentos de sua vida, desde os mais confusos e incertos até os mais perfeitos e decisivos, como ter um filho.
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