quinta-feira, 16 de abril de 2009

Terra do sonho
Como entender e fazer parte de uma cultura, que não é a sua?

Por Carina Barros

Entrar em um país, que não é o seu, e ali passar um período da vida, para alguns pode ser uma tortura, outros entenderiam como uma aventura. Encarar esta situação parece fácil, mas não é! É como romper o cordão umbilical com a pátria-mãe.
O encontro com uma nova cultura pode trazer um alívio, em momentos de conflitos políticos. Para a chilena Anita Maria Vargas Erceg, 40 anos, atualmente professora de espanhol, a vinda para o Brasil foi quase uma fuga. Expõe: “Fugíamos de uma ditadura, em 1982. Conhecíamos, aqui, no Brasil, duas pessoas, apenas”.
Esses confrontos, muitas vezes, trazem barreiras para a adaptação em um novo país. Mário Geremias, 50 anos, padre e coordenador da Pastoral do Imigrante da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, alerta: “Depois do 11 de setembro, o imigrante, que antes era o ‘amigo da pátria’, pois trazia consigo o desejo de construir a América, hoje, é considerado um inimigo”. Para ele, este cidadão é marginalizado, pois “muitas vezes o enxergam como uma ameaça, que causa violência e desemprego”. Esse conceito altera-se para etnias mais antigas como a dos japoneses, que comemorou este ano o centenário de sua imigração, em São Paulo. A ilegalidade é outro obstáculo para essa sociabilização. “A documentação é uma conquista, que propícia essa integração”, aponta o padre.

Memória Traçada

Na tentativa de reconstruir sua pátria, pessoas comuns acabam por retornar muitas vezes ao seu país de origem, porém não são todas que podem reorganizar suas vidas. Para isso, procuram estabelecer vínculos neste novo território. Anita mantém o costume de saborear abacate com sal, no pão. Explica: “Não consigo comer o abacate de outra forma, que não seja essa”. A salsa e as músicas latino-americanas são hábitos, também, cultivados por ela. Além, é claro, do próprio idioma: “Passo a maior parte do tempo falando espanhol, principalmente, com a minha filha”. Já, Silvana Mendonza Latorre, 45 anos, uruguaia, veio para o Brasil, pois o trabalho do seu marido exigia essa mudança: “Foi difícil, mas víamos, no Brasil, uma ótima opção”.
Por outro lado, existem as lembranças, que colaboram para preservação da memória de um país. Maria Rosa da Silva Cruz, 81 anos, aposentada, filha de português e neta de italiana, recorda-se de seu pai com muita saudade: “Lembro-me dos passeios de charrete com meu pai, em Ribeirão Preto. Ele me levava em todos os lugares”. Manuel José da Silva veio para o Brasil no início do século 20. Os navios, que chegavam ao Brasil, traziam muitos sonhos. Construir a América, seria um deles: “Meu pai queria se aventurar pelo Brasil”, afirma Maria. Ao chegar aqui, seu pai trabalhava na lavoura. Ordenhava ovelhas e, tão logo, tornou-se serralheiro e carpinteiro. Veio a falecer, quando ela tinha 12 anos.

Identidade e conflitos culturais

Essas histórias apontam caminhos diferentes, percorridos, até mesmo, por personagens importantes da nossa literatura. Mário de Andrade personifica em Macunaíma um brasileiro sem identidade própria. Gilberto Freyre descobre as senzalas e as casas grandes para nos dizer que “todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro”.
A cidade de São Paulo é um exemplo dessa mistura, principal região de atração imigratória, ao longo dos séculos 19 e 20. A Historiografia Tradicional diz que essa imigração em massa foi a forma encontrada para substituir a mão-de-obra escrava, diante da abolição da escravatura, porém omite a tentativa de higienizar a população brasileira por meio do seu “embraquecimento”. São Paulo, então, tornou-se acolhedora, com seus aspectos cosmopolitas. Porém, essa integração não aconteceria, sem antes existir os conflitos culturais. Anita afirma ter presenciado “o choque da falta de cultura”. Complementa: “Quando cheguei aqui, encontrei pessoas analfabetas, que não se preocupavam em utilizar o idioma corretamente”.
Essas diferenças culturais sempre acontecerão. Apesar disso, elas não são maiores do que a solidariedade entre os povos. Ao chegar ao Brasil, Anita morava em uma pensão com seus pais e, logo após, mudou-se para um apartamento. Lá chegando, encontrou o apoio de alguns brasileiros e relembra: “Quando fomos para o apartamento, o moço da ‘perua’ nos doou um fogão, que foi utilizado por 15 anos. A vizinha, de cima, tinha duas panelas e nos deu uma”.
Anita reitera: “Ajudar independe da nacionalidade. Essas pessoas, que nos ajudaram, não nos conheciam. Não pedimos nada, mas elas estavam ali, prontas para nos ajudar”.
Para os orientais, esses conflitos são aparentes. As características físicas geram confusões. Janete Leiko Tanno, descendente de japoneses e historiadora, ressalta: “Somos nipo-brasileiros. No Brasil, somos japoneses. No Japão, somos brasileiros. Temos uma dupla identidade, que se inscreve nessas duas culturas”.

Movimentos Constantes

Ilana Peliciari Rocha, 27 anos, historiadora e professora, estuda a imigração sob um outro ponto de vista, do qual os estudiosos da Historiografia Tradicional, ainda, não se deram conta. São aspectos relacionados à reemigração e ao refluxo. Para ela, o movimento de ida e vinda não pode ser desconsiderado. “A saída desses cidadãos é um movimento, que não pode ser denominado como um fim”.
A historiadora, também, analisou o perfil de vários povos europeus, a partir de 1908, e declara: “Os portugueses retornavam mais rapidamente ao seu país de origem. Os italianos, por sua vez, além de retornar, reemigravam, principalmente, para a Argentina. Os espanhóis reemigravam com mais freqüência”. Justifica: “Esses movimentos aconteciam em família e estavam ligados a fatos sazonais, ora pela colheita, ora pela situação econômica e pela influência do mercado”.
Olhares novos como de Ilana nos possibilita entender melhor as particularidades de uma realidade, que nos parece distante no tempo, mas que, ainda, existe. Contar a História a partir dos grandes eventos oculta a singularidade dos milhares de relatos de pessoas, que colaboraram e colaboram para a compreensão da vida humana.


Peças de um mosaico
A construção de uma identidade coletiva


A história visual de cada sociedade tem a sua importância, na medida em que ela se torna um mecanismo de difusão cultural. “A dinamização cultural, através da fotografia, possibilita o acesso dessa memória à comunidade”, diz Ângela Disessa, fotógrafa, professora e responsável do Projeto “Santu Paulu”.
O Projeto existe desde 2003 e nasceu de uma busca pessoal de suas origens. “Não tive uma convivência com a cultura baresa, apesar dos meus avós serem bareses. Havia vários distanciamentos”, afirma Ângela. Essa procura individual manifestava uma necessidade muito maior, ou seja, uma necessidade coletiva. O trabalho acolhe a memória, em som e imagens, dos descendentes e imigrantes de Polignano a Mare, Puglia (sudeste da Itália) que vivem em São Paulo, conhecidos como “bareses”. Eles se instalaram, principalmente, na região entre a Rua do Gasômetro e o Mercado Municipal, no fim do século 19. Seu acervo conta com 90 horas de depoimentos gravados em áudio e mais de quinhentas fotos familiares digitalizadas e as de autoria da fotógrafa, durante seus 17 anos de trabalho.
“O desejo das pessoas, quando me entregam as fotos, é não morrer”, revela Ângela. Para ela, a principal característica do Projeto é criar uma apropriação da hereditariedade cultural. Reitera: “A tradição se opõe ao conservadorismo, na medida que a sua importância é dar continuidade a essa memória cultural”.
O Projeto se pauta a partir de pesquisas, organização de bancos de dados e divulgação de conteúdos através de workshops, programações culturais, mostras, publicações e propostas de estratégias que dêem visibilidade à memória paulistana/baresa.
Uma das iniciativas da fotógrafa é recriar a narrativa histórica a partir da mulher pugliese. “As mulheres, principalmente as puglieses, contribuem, de uma maneira geral, para a manutenção cultural”. Para ela, há uma vivência muito forte dessas mulheres, que não se articula com lógica racional da Historiografia.
Ângela transformou a sua necessidade em uma busca coletiva, a partir de suas próprias impressões. É como se ela estivesse reconstruindo um enorme mosaico, a sua própria vida.

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